Tínhamos acabado de descer da Pedra do Sino.
O grupo estava bem, clima estável, e decidimos seguir para o segundo cume do dia: Pedra do Papudo.
Éramos eu e mais três clientes.
A trilha estava muito fechada, com bambus e vegetação invadindo completamente o caminho.
Eu não estava com facão. Um dos clientes me ofereceu uma faca tática, e comecei a abrir passagem com ela.
Na descida do Papudo, eu seguia à frente do grupo.
O terreno era inclinado, estreito e escorregadio.
De repente, ouvi um escorregão logo atrás de mim.
Em seguida, um grito forte:
“Minha perna!”
O cliente que vinha atrás escorregou e caiu por cima de mim.
Pela inclinação da trilha, precisei fazer uma força enorme para segurar nós dois e impedir que escorregássemos mais.
Quando consegui estabilizar a situação e olhei para ele, vi um corte profundo em formato de V na canela, subindo quase até o joelho.
O cliente gritava muito, o que dificultava qualquer avaliação imediata.
Naquele momento, não sabíamos o que havia causado o ferimento.
Minha primeira reação foi olhar para a faca, pensando que o corte pudesse ter sido causado por ela.
Não havia sangue na lâmina.
Mesmo sem, à época, ter um treinamento tão apurado em primeiros socorros em áreas remotas, um ensinamento veio claro à cabeça:
“Se há um corte profundo, uma possibilidade pode ser fratura exposta.”
Você está em terreno remoto, trilha fechada, com três clientes sob sua responsabilidade.
Um deles apresenta uma laceração profunda na perna, grita de dor, e o mecanismo do ferimento ainda não está claro.
Você tem recursos limitados, sem kit completo, e está em área íngreme.
👉 Qual é a sua avaliação inicial?
👉 O que você faz primeiro?
👉 Você desce, espera resgate ou tenta estabilizar no local?
(Agora siga para o que realmente aconteceu.)
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O Que Foi Feito
Por sorte, um dos participantes era médico.
Perguntei a ele diretamente o que achava. Após avaliação visual e funcional, ele afirmou que não parecia fratura exposta.
Outros sinais reforçaram isso:
Consegui acalmar o cliente, o que foi essencial para seguir.
Iniciamos a limpeza do ferimento.
Usei a mangueira da bolsa de hidratação, aplicando água com certa pressão para remover a sujeira.
Naquele momento ficou claro um erro importante:
❌ Eu não estava com um kit de primeiros socorros adequado.
Improvisamos um curativo com uma camiseta, protegendo o ferimento.
Somente depois identificamos a causa real:
👉 o cliente cortou a perna numa ponta de bambu mal cortado, deixada exposta na trilha, num trecho com risco iminente de queda.
Deixei os três clientes aguardando em local seguro e subi até um ponto com sinal.
Entrei em contato com os bombeiros, que orientaram avaliar se o cliente conseguia andar.
Ele conseguia:
Decidimos iniciar a descida assistida.
Descemos até a trilha do Sino, mais aberta e menos inclinada.
Improvisamos bastões de trekking.
A descida foi lenta, cansativa e longa — cerca de 5 a 6 horas.
Ao final:
O cliente foi atendido no hospital, passou por procedimento cirúrgico e recebeu diversos pontos na região da canela.
Após a alta, retornou para casa.
Alguns dias depois, apresentou complicações internas relacionadas ao ferimento e precisou de novo atendimento médico.
Felizmente, a situação foi controlada e não houve sequelas.
Hoje, o cliente está bem e segue sua vida normalmente.
Esse foi o único incidente significativo que vivi em anos de montanhismo e guiamento.
Não foi um evento imprevisível.
Foi a soma de pequenas decisões anteriores que, naquele dia, passaram despercebidas.
O ambiente já dava sinais:
Na montanha, o acidente raramente nasce no momento do impacto.
Ele começa quando a antecipação falha.
O aprendizado ficou claro:
gestão de risco não é reagir bem, é reduzir ao máximo a chance de ter que reagir.
Hoje, essa experiência orienta minhas decisões, meu planejamento e a forma como conduzo pessoas na montanha.
Antecipar riscos é a melhor forma de prevenir acidentes.
Treinar cenários como este ajuda a manter a mente preparada e o grupo mais seguro em expedições reais.
Montanhista há mais de 17 anos e atuo como guia profissional há mais de 10 anos na Serra dos Órgãos. Tenho certificação internacional em Wilderness First Responder (WFR) pela NOLS, referência mundial em medicina de áreas remotas.
Este estudo de caso foi inspirado nas séries de estudos de caso da própria NOLS (link aqui), mas adaptado para a realidade brasileira e, em especial, para o contexto da Serra dos Órgãos.
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